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A palavra sororidade tem sido cada vez mais utilizada em diversos lugares e por pessoas dos mais variados espectros sociais, não se restringindo aos espaços e discursos exclusivamente feministas, como outrora. Seu uso tem se espraiado e sua apropriação tem gerado discursos diversos, que vão desde reivindicações legítimas pela união das mulheres em torno de lutas emancipatórias, até falas ambíguas, contraditórias e/ou controversas sobre uma possível irmandade absoluta e universal entre pessoas do sexo feminino, independente das contradições de classe, raça e de outros marcadores sociais. Atualmente, portanto, o termo sororidade está presente no âmbito dos movimentos sociais, da produção acadêmica, das campanhas governamentais, dos programas de televisão e nos discursos de celebridades que nem mesmo o relacionam com sua matriz feminista ou com as lutas em prol do empoderamento das mulheres em contextos específicos. Ou seja, a palavra sororidade tem estado cada vez mais em cena, seja como uma insígnia, um slogan ou um termo novo que muitas pessoas consideram interessante usar. Mas, afinal, do que se trata e o que de fato significa essa tal sororidade?

Conceitualmente, o uso da palavra sororidade já tem mais de 40 anos no campo feminista, uma vez que a norte-americana Kate Millet o invocou, em plena década de 1970, com vistas a construir uma sisterhood feminina para fortalecer a luta pela “liberação das mulheres”. Neste contexto, e influenciada pelo chamado marxista “trabalhadores de todo o mundo, uni-vos”, o que feminismo de então realmente pretendia era uma união universal das mulheres, desconsiderando aspectos outros como classe, raça, etnia, dentre outras formas de diferenciação e até mesmo divisão social.  

Duas décadas depois, a antropóloga mexicana Marcela Lagarde tornou o conceito ainda mais familiar para a perspectiva latino-americana, definindo-o como um pacto, uma aliança entre mulheres de distintas experiências e perspectiva sociais, a fim de trabalharem juntas contra as mazelas do patriarcado. Trata-se, portanto, de uma proposta política baseada numa ética feminista, em que a união das mulheres não se dará em termos definitivos, mas pontual e estratégico, respeitando-se as diferenças entre as mesmas e reforçando seus objetivos comuns.  

A contribuição de Marcela Lagarde permitiu perceber os limites e as possibilidades de uso teórico e prático deste conceito, pois o mesmo não pode ser visto como uma mera associação acrítica de mulheres, mas como um acordo, um pacto que leva em conta vivências comuns, decorrentes da consciência de gênero, isto é, de uma condição social e histórica compartilhada. Esta perspectiva é interessante porque adverte que o conceito de sororidade não deve ser apresentado como sinônimo de solidariedade ou irmandade entre mulheres, já que não é isto que os feminismos propõem. Por isso, sororidade não é só mais um termo para sinonimizar palavras já existentes. Se assim o fosse, que razões teriam os feminismos para invocar este termo?

Em teoria feminista, as palavras servem para nomear realidades, para visibilizar situações e para promover reflexões e ações políticas transformadoras do status quo de gênero. E com o termo sororidade não seria diferente…E, embora sororidade venha da palavra latina soror, tal termo não deve ser tomado ao pé da letra, pois não se trata de fazer referência a uma identidade religiosa, ou uma irmandade feminina, em substituição da palavra fraternidade que vem de frater, isto é, irmão. Afinal, sororidade não é um termo para ser adotado com cunho religioso, mas sim político, vez que se refere a relações sociais.  Neste contexto, a sororidade se apresenta como um pacto entre mulheres, mas um pacto de caráter diferenciado, que visa a transformação das relações destas entre si, a fim de lutar contra a desigualdade de gênero, ou seja, uma articulação capaz de transformar as relações de gênero desiguais, assimétricas, desumanas. 

Portanto, a ideia de sororidade está vinculada ao campo da ética e da política feminista. Diz respeito a uma visão de mundo e às possíveis ações para que a subalternização das mulheres seja superada. Requer união, compartilhamento de ideias, compreensão de realidades, percepção de experiências comuns, apoio mútuo, etc. E, assim entendido, o conceito de sororidade apresenta uma potência transformadora, pois facilita a construção de ações relacionadas ao enfrentamento de diversas situações de opressões pelas quais as mulheres passam. Por isso, pode se dizer que a sororidade é uma ética e uma política que informa e orienta a ação das feministas e se manifesta de várias formas, dentre elas, em campanhas públicas realizadas em todo o mundo, tais como: “Nenhuma a menos” (para enfrentar a violência de gênero contra as mulheres); “Irmã, eu acredito em ti” (para fortalecer a denúncia contra violência sexual, por exemplo), “Uma sobe e puxa a outra” (para construir ações de empoderamento coletivo), “metoo” (para demonstrar que as violências contra as mulheres não são casos isolados); “mexeu com uma, mexeu com todas” (para demonstrar a unidade e a empatia entre as mulheres diante das opressões e violações), dentre tantas outras. 

Sororidade é, portanto, um termo que pode ser utilizado para romper com o individualismo presente em visões liberais de mundo, do tipo “salve-se quem puder”, ou “cada uma cuide de si”, etc. Visa demonstrar que por terem experiências comuns com relação à exclusão social, à violência de gênero, à sub-representação política, à representação negativa na mídia, dentre outras, as mulheres de um modo geral, e as mulheres populares, principalmente, não devem reproduzir os discursos hegemônicos sobre elas mesmas, e nem devem cair nas armadilhas patriarcais, racistas e capitalistas que estimulam a competição ou a inimizade entre umas e outras. Sororidade ajuda a fortalecer a atuação em grupo, em coletivos, em redes, com vistas à afirmação dos direitos humanos das mulheres, a defesa de suas vidas, de suas liberdades e à exigência de ações estatais que garantam suas existências com dignidade e com respeito social. 

O pacto que a sororidade favorece propõe reconhecer a cada uma como titular de direitos, como merecedora de respeito, como interlocutora social, sem negar as diferenças de classe, de raça, de nacionalidade, de religiosidade existentes entre as mulheres.  Por isso, este conceito tem sido reivindicado para impulsionar lutas contra todas as formas de exclusão e de violência contra as mulheres, estimulando ainda a organização e à mobilização feminina. É, portanto, um conceito caro aos feminismos de um modo geral e aos feminismos populares e comunitários, em particular. Por isso, é algo mais que uma irmandade entre mulheres. É uma proposta de (auto)transformação social, que requer um olhar sobre si mesmas e sobre as demais mulheres e sobre o que há em comum em suas vidas que as coloca em posição de exclusão, inferioridade ou sub-representação em diversas esferas sociais.  Trata-se de um compromisso para conseguir ganhos sociais e direitos humanos para todas. 

Apesar do exposto, algumas pessoas consideram dispensável um conceito como este, argumentando que bastaria usar o termo solidariedade. Ocorre que este termo é amplo demais e não trata da especificidade de gênero que se refere a todas as mulheres pela sua condição de mulher. Assim como o conceito de dororidade, cunhado pela escritora e feminista negra Vilma Piedade, para se referir a experiências e dificuldades que somente as mulheres negras vivenciam em face dos impactos do racismo em suas vidas e dos seus familiares. Segundo esta autora, dororidade seria uma espécie de cumplicidade entre mulheres negras que compartem dores e experiências de exclusão e opressão próprias e específicas no seu existir histórico. 

A sororidade é precisamente um termo reivindicativo, de caráter eminentemente político, que não daria para ser expresso pela palavra solidariedade. Até porque, como se observa a cada marcha de mulheres, a cada oito de março, centenas de milhares de mulheres saem às ruas para denunciar preconceitos, discriminações e violências, além de reivindicar direitos específicos para a metade feminina da humanidade, pugnando por uma sociedade mais justa, democrática e igualitária em termos de gênero. 

Mas cabe perguntar: a sororidade exige que estejamos todas sempre de acordo com todas as mulheres em todas as circunstâncias? Esta é uma questão que precisa ser elucidada, pois isto não somente seria impossível, como é até mesmo indesejável do ponto de vista feminista. Até porque não é somente o gênero que constitui a experiência das mulheres, outros marcadores, como classe, raça, etnia, geração, religião, etc fazem parte da complexa realidade de todas nós. Portanto, inexiste possibilidade de estarmos de acordo, o tempo todo, com as posições políticas e visões de mundo de todas as mulheres, porque somos diversas e até mesmo em nossa própria trajetória mudamos bastante ao longo do tempo. Ademais, ser feminista não significa “amar todas as mulheres” e muito menos “odiar todos os homens”. Significa defender os direitos humanos para todas e lutar por relações de gênero mais igualitárias e justas em determinado contexto social e histórico. Trata-se, por exemplo, de combater discursos hegemônicos tais como aqueles que culpabilizam as vítimas de violência sexual. E, em caso de haver mulheres fortalecendo essas narrativas, posicionar-se firmemente contra tais discursos, ainda que venham de outras mulheres, e ter empatia para com as mulheres que se encontram em situação vulnerável, é dever de toda feminista. Não significa, portanto, blindar as mulheres da crítica, sobretudo as que têm privilégios ou ocupam espaços de poder, mas evitar fazer críticas que se relacionem com sua condição de mulher. 

Enfim, a ideia de sororidade aposta e investe fortemente numa cultura de cuidado entre as mulheres, de ajuda mútua, de aliança, de empatia, sobretudo com as mais vulnerabilizadas. Mas não deve ser visto unicamente como uma atitude individual ou como uma medida para ter relações mais saudáveis entre seres do sexo feminino. É isto, sim, mas não deve ser só isto. Evitar a rivalidade, a inveja e a competição deve ser algo que a sororidade deve buscar, mas isto, por si só, não transforma as estruturas hierárquicas de gênero. O foco deve ser o compromisso com a luta antipatriarcal, contra todas as formas de opressão e dominação. Afinal, de que adianta fazer um discurso em prol da sororidade e fortalecer o sistema capitalista que, por sua vez, alimenta o racismo e o sexismo contra as mulheres de um modo geral e contra as mulheres negras e das camadas mais pobres, em particular?

A sororidade precisa ser materializada em ações específicas, e para tanto se faz necessário evitar o culto à personalidade, a ideia de empoderamento unicamente individual, a hierarquia entre mulheres. Envolve compartilhar conhecimentos, experiências, conquistas, bens, serviços, etc. Mas não necessariamente assumindo o papel do Estado, em que pese a importância e até mesmo a necessidade do trabalho voluntário em determinadas situações. Mas, por exemplo, a sororidade não deve ser tomada como substituição de políticas públicas, posto que tende a sobrecarregar outras mulheres ou impor a estas responsabilidades que devem ser exigidas do Estado enquanto instituição constitucionalmente responsável pela inclusão e pela reparação das desigualdades sociais. Ademais, sororidade não é sinônimo de caridade. É uma forma de relação entre sujeitos que devem se perceber como iguais. Até porque quando uma mulher imagina ser sóror de outra mulher e faz por ela o que ela, com o apoio de políticas públicas, pode e deve fazer, não se está construindo relações horizontais  entre seres que se respeitam e se reconhecem como iguais, mas reforçando hierarquias, assimetria e novas formas de desigualdades sociais, posto que impede o empoderamento uma da outra e castra suas possibilidades de agência. 

Se a sororidade combate a hostilidade, a inimizade, a competição entre mulheres, a irmandade caritativa alimenta a sujeição, a submissão, a falta de agência e, com isto, a ausência de empoderamento daquelas a quem uma visão equivocada de sororidade pode afetar. Em que pese algumas pessoas argumentarem que a sororidade deve ser pautada em relações de amizade, esta não é a regra. Nem mesmo é condição para a sororidade acontecer, pois a perspectiva da empatia, da aliança e da união não existe a amizade como condição fundamental, posto que é possível e necessário ter uma postura de sororidade para com as mulheres dos mais distintos lugares e das mais distintas visões de mundo, desde que estejam sendo atingidas pelo jugo do patriarcado e de outros sistemas que com estes se relacionam. 

É a sororidade, enquanto ética e política feminista, que nos faz protestar contra abusos e violências cometidas contra mulheres com as quais não temos a menor afinidade política ou ideológica, mas entendemos se tratar de um ser humano cujos direitos são violados por compartilharem conosco uma identidade de gênero e uma condição socialmente desvalorizada. A sororidade não orienta que tenhamos uma aliança de natureza definitiva com uma mulher com quem não partilhamos qualquer ideia, interesse ou situação, trata-se mais de uma visão, de uma ética e de um compromisso com a construção de um mundo melhor para todas as mulheres.