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O termo “gênero” está na moda, inclusive no âmbito jurídico. E em que pese tratar-se de um dos conceitos mais caros às teorias feministas contemporâneas, nem sempre é tomado como tal, isto é, como uma categoria de análise da realidade social. Mas ao revés, tem sido utilizado de modo bastante equívoco, quando não ambíguo. Há quem o acione como substantivo, adjetivo e até mesmo como verbo. Há quem use gênero como sinônimo de mulher, como qualificativo de pessoas ou simplesmente como um modo de viver. Há uma febre do termo gênero nos mais diversos espaços sociais. Seus defensores e detratores não o retiram da boca. A turma do movimento Escola sem Partido, que dissemina ignorâncias sobre as questões de gênero, quer extirpá-lo do exercício da docência, como se a proibição do uso de uma palavra fosse suficiente para retirar de cena a realidade que ela nomeia, isto é, as desigualdades das relações estabelecidas entre homens e mulheres, as múltiplas identidades dos sujeitos gendrados, a luta pela igualdade nesta seara, etc.  É muita gente falando de gênero e pouca gente sabendo do que realmente fala.

No mundo jurídico não é diferente, pois o gênero tem sido utilizado, na maioria das vezes, de modo retórico e ou meramente instrumental. Basta observar os eventos em que o termo gênero é reivindicado: seja em cartazes, mesas de debates ou discursos inflamados. E no dia 8 de março, então, não há praticamente ninguém que não o utilize, para esquecer a temática no dia seguinte. No entanto, e paralelo a isto, o que se vê são incompreensões e muitos equívocos, todos  perfeitamente evitáveis, caso as pessoas se dessem ao trabalho de saber do que estão falando ou parassem de invocar termos que não traduzem os fatos que estão relatando em seus discursos. Exemplo: fala-se muito em igualdade de gênero em eventos de entidades como a Ordem dos Advogados. Mas, no dia a dia, poucos se ocupam de perceber ou evidenciar o lugar das mulheres nestes espaços. Enchem a boca para discursar sobre gênero, mas usam o termo sempre asséptico de feminismo. Mas quando lançam as chapas eleitorais, as mulheres estão sempre na posição de vice, ao passo que os homens ocupam a cabeça das chapas e ainda dizem que elas são “ótimas auxiliares”. O mesmo se diga dos tribunais de justiça, pois em dias de festa (oito de março, principalmente), rendem homenagens e fazem afagos à igualdade de gênero, mas basta uma disputa pelo quinto constitucional que nem mesmo as mulheres mais votadas pelos pares na advocacia ocupam as listas tríplices deste órgão destinadas ao chefe do executivo.  Sem falar no ministério público e na defensoria, que na atualidade até dispõem de organismos internos destinados a tratar dos direitos das mulheres, e que são muito importantes e merecem destaque e respeito, porém, nas cúpulas destas estruturas seguem hegemonicamente em mãos masculinas, quando não proferem discursos flagrantemente machistas, sem nenhum pudor.

E no que tange ao mundo acadêmico, e mais particularmente às faculdades de Direito, aí o bicho pega mesmo, posto que a perspectiva de gênero passa longe dos projetos político pedagógicos. E somete uma ou outra docente aporta algumas mínimas questões sobre o tema, mas, em geral, expurgando a teoria feminista que organiza, desenvolve e aprimora este conceito.

Na UFBA, por exemplo, que é o espaço onde laboro, tenho participado de muitas bancas de trabalhos de conclusão de curso, em nível de graduação e de pós, e são raros os trabalhos que abordam esta temática, apesar de se reportarem a temas como igualdade, liberdade, justiça, cidadania, etc. Em nível de mestrado e doutorado, o campo jurídico ainda é muito deficitário em perspectiva de gênero. Inexistem linhas de pesquisa no campo do direito que possibilitem uma abordagem explícita, nominal da temática. Para se ter uma ideia, a primeira disciplina nominalmente chamada de “Gênero e Direito” foi ofertada por mim, em 2017, no mestrado e doutorado em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismos, PPGNEIM, onde inaugurei este debate a partir das minhas incursões teóricas e metodológicas pelo Pensamento Jurídico Feminista, que eu teorizo sob a rubrica de “Feminismo Jurídico”.

Vale pontuar que a inclusão desta disciplina no referido curso não foi algo que ocorreu de imediato, pois batalhei bastante para me credenciar no referido programa e apresentei um plano de trabalho que visava suprir esta carência, vez que o gênero dialogava pouco com o campo do direito e o campo do direito dialogava pouco com o campo de gênero, ao menos na UFBA, onde há mais de trinta anos há estudos feministas em pleno desenvolvimento. Ademais, para lecionar num programa de mestrado e doutorado como este, passei pelo crivo de um colegiado de professoras e professores extremamente exigentes, que gozam de larga experiência no campo dos Estudos Feministas, ou seja, foi preciso passar pela peneira  de um Programa de mestrado e doutorado não de Direito, mas de  Estudos de Gênero[1], com enfoque declaradamente feminista para que eu pudesse ser considerada apta a institucionalizar uma discussão que antes transitava apenas en passant em reflexões escassas. E, olhe que eu já tinha cursado um mestrado e uma especialização em Direito com enfoque de gênero, além de ter curso de Metodologia de Incorporação dos Estudos de Gênero no Direito. E foi justamente todo

[1] Com estância acadêmica de um semestre na Universidade Autônoma do México.

este esforço, todo este preparo, que me conferiu habilidades e competência para discutir e lecionar tais assuntos, além de atuar neste campo como advogada, desde a década de 1990.

 Por tudo isso, considero que faz falta uma formação que articule a interface entre Gênero e Direito para muitos docentes do campo jurídico, ainda que tenham desenvoltura em outras áreas, tais como Direito Civil, Penal, Constitucional, Administrativo, etc, mormente para os sujeitos que usam e abusam do termo gênero no mundo da Justiça, sem se dar ao trabalho de aprofundar-se no assunto. E quando digo formação, não estou me referindo a um minicurso de poucas horas, ministrado por quem não tem profundidade na temática. Estou falando (e propondo) uma verdadeira iniciação científica, que deve ser séria, sistematizada e, sobretudo, transformadora das visões hegemônicas neste campo. O que não tem ocorrido, dado que muitas das pessoas que oferecem cursos sobre gênero, violência contra a mulher e até mesmo sobre criminologia, mal leram algumas obras, e muitas delas nem são clássicos da literatura feminista. Mas, como tudo neste mundo tem sido objeto de marketing e mercantilização, já existe no mundo jurídico várias propagandas de pessoas que dizem conhecer profundamente os temas que envolvem as teorias feministas do Direito sem qualquer credencial séria neste sentido.  Ou seja, para alguns a jornada é árida, penosa, sofrida, mas para outros basta uma autodeclaração. Mas, como dizem as feministas populares, “todo mundo sabe quem é de verdade e todo mundo sabe quem é de mentira”.

Eis porque é importante destacar que uma das formas de se detectar o charlatanismo neste campo é não somente apreciar os currículos dos sujeitos, mas a sua prática cotidiana e o seu compromisso social com o campo. Como é possível que alguém possa conhecer com profundidade uma realidade sobre a qual não faz qualquer análise crítica, em face da qual não realiza qualquer investigação científica séria, ou mesmo se posiciona em momentos de crise? Não há possiblidade de alguém manejar o conceito de gênero, e muito menos de ministrar classes em cursos relacionados às teorias feministas do Direito sem que minimamente tenha passado por uma formação em que o uso retórico do gênero e a sua instrumentalização é absolutamente rechaçado, questionado e, sobretudo, combatido. Portanto, não comprem gato por lebre.  Ninguém coloca as lentes de gênero impunemente. Quer ser docente deste campo? Há que ter formação para isto, como em qualquer outra área.  Quer ser profissional desta área? Há que ter preparo, esforço e, principalmente, compromisso social explícito, e não engajamento ocasional ou empresarial. E não se trata de conhecer a ciência para tentar “salvar” as mulheres que dela foram privadas. E tampouco apresentar-se como líder, diva, rainha ou autoridade sobre quem quer que seja. No campo dos estudos feministas, sobretudo nos feminismos comunitários, negros e decoloniais, com os quais tenho acordo, inexiste espaço para o empoderamento individual e utilitarista de sujeitos. Gênero, repita-se, é uma categoria de análise científica, é um conceito que serve para desvelar e estudar uma realidade onde as diferenças sexuais são transformadas em desigualdades sociais. Mas é, também, e acima de tudo, um termo que visa apontar estratégias de combate e superação da violência de gênero, das desigualdades relacionadas às hierarquias e assimetrias entre os gêneros. Além das desvantagens intragenéricas, isto é, entre as próprias mulheres ou entre os próprios homens. Portanto, vale ficar atenta, vale ficar atento. Uso retórico e instrumental do gênero não serve para transformar o status quo social e muito menos no mundo jurídico, mas, ao contrário, serve para esconder, para mascarar e, principalmente, para perpetuar injustiças. Quem quer que faça este tipo de uso da referida categoria não merece crédito, pois não tem compromisso com os mais elementares princípios das teorias feministas, pode até ser bom no Direito, pode até ser estrela no céu dos Deuses jurídicos, mas no chão da fábrica da construção jurídica dos estudos de gênero e sua interface com o Direito emancipatórios não passa de artista em busca de fama.

Que o feminismo siga o fluxo da construção libertária do mundo, e não como mecanismo de conformação de mercados ou, como disse Nancy Fraser, como artefato das ambições neoliberais. Se no Direito as elites sempre podem demais, que as teorias feministas e suas categorias analíticas não sirvam para perpetuar este tipo de poder que quer mais e mais poder sem servir às mulheres populares e diversas jamais. Nem a retórica, nem o uso instrumental do gênero deve ser objeto de nossos aplausos. Nossa luta é muito mais.